A Sociedade que se Teletransporta



O ano era 2030 e descobriram a tecnologia do teletransporte. Em pouco tempo o teletransporte virou algo corriqueiro e todos usavam, mas uma problemática ainda não fora resolvida: seres humanos não podiam - em hipótese nenhuma - se teletransportar.
Mas voltando ao princípio... o teletransporte foi desenvolvido por uma mulher chamada Luise McMilliam, que começou utilizando pequenos objetos no projeto. Pontas de lápis, pregos, parafusos, tampas de canetas, canetas, cadernos, etc, etc. Lembro de quando começaram a teletransportar animais (sem a perda de membros!) e todo mundo da escola onde eu estudava falou disso por uma semana toda.
Foi realmente inovador como, em algum momento, as pessoas passaram a resolver muita coisa através dos portais teletransportadores. Quando você ia ao mercado, por exemplo, ninguém precisava carregar as compras, era só enviá-las por um portal. Existiam até alguns esportes novos do tipo que envia bolas e bastões de um lugar ao outro, algo bem complexo na verdade, eu nunca consegui ser muito boa.
Em alguns pontos foram criados problemas como demissões em massa, visto que não se utilizava mais caminhões, aviões e navios para movimentação de cargas. Isso foi um problema principalmente para as pessoas que trabalhavam com atividades manuais.
A questão mais relevante, no entanto, só surgiu em outubro de 2033. William Lucas, um dos estagiários de McMilliam, violou uma das leis internacionais e tentou se teletransportar.
Lucas atravessou um portal, mas quem saiu não foi ele. A aparência era a mesma, a mesma roupa, o mesmo tipo sanguíneo e, biologicamente, ainda era pai de uma linda garotinha. Mas ele não era mais o mesmo.
Perceba, leitor, que o teletransporte humano ainda não havia acontecido por uma questão fundamental: a alma. Afinal, haviam duas possibilidades:
1- A pessoa atravessar o portal e manter sua personalidade, mostrando que havia algo maior como alma, um consciente metafísico.
2- A pessoa atravessar o portal e chegar do outro lado com uma personalidade diferente, o que a ciência acreditava que ocorreria. Provaria que todos os aspectos que julgamos relacionados com nossa alma são, na verdade, fruto das nossas sinapses.
Ah, sim! Uma breve explicação sobre o teletransporte: cada átomo do corpo é teletransportado e colocado no mesmo lugar dentro do corpo, mas em outra localização geográfica. Basicamente somos destroçados e rearrumados.
William Lucas foi, portanto, o segundo caso. Sabe qual a problemática em assumir que não existe uma alma? Deus, o salvador das almas (agora inexistentes). Diversos grupos começaram a assumir posturas violentas frente às religiões que pregavam uma vida cheia de restrições em troca de uma salvação espiritual. Em contrapartida, todo um movimento religioso emergiu do caos dizendo que esse era um plano de Deus para testar nossa fé, que os cientistas mentiam e que era tudo uma conspiração soviética (juro, isso saiu no jornal).
Algumas pessoas tentaram se teletransportar e provar que os cientistas estavam errados quanto a Lucas. Não estavam.
Então surgiram os pseudo-assassinados. Pessoas forçavam outras a passarem pelos portais, tornando-as seres humanos completamente diferentes. Teve um caso muito interessante onde um padrasto teletransportou seu enteado por ter ciúmes da relação mãe-filho. A mulher ficou arrasada pois amava seu menino, tinha dúzias de desenhos dele colados pela casa, milhares de lembranças e um número ainda maior de planos para realizar com o filho. A criança, por outro lado, não a reconhecia.
Surgiram inúmeras leis que puniriam casos como o mencionado. Com o tempo, o uso do teletransporte se tornou restrito às grandes corporações, embora fosse fácil conseguir um no mercado negro. Um dia, o presidente de um dos países mais influentes foi pseudo-assassinado e, após uma onda de ataques à elite de diversos países, o uso de teletransportadores foi proibido.
Em uma nova inquisição, era proibido ler, falar, gesticular, desenhar, filmar ou até pensar sobre teletransporte. Portais de todo mundo eram confiscados e queimados. Algumas pessoas tentaram resistir, mostrar que ainda era possível um uso inteligente, mas uma minoria. Foi uma tecnologia muito rápida e que assustou demais, a humanidade não estava pronta para lidar com isso. Quando Luise McMilliam morreu foi quase um aviso divino - do mesmo Deus que até então questionávamos - de que o portais deveriam ser extintos. E mais! Seria melhor agir como se eles nunca houvessem existidos. Apagar livros, notícias, não publicar nada e deixar a memória coletiva, tão debilitada, esquecer do fato com o passar dos séculos.
O ano é 2057 e o último portal foi destruído.

- Triz

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